Para ler escutando: The Power Of Love, do Frankie Goes To Hollywood
Queria ter enviado este texto na semana passada, mas estive doente e foi impossível, mesmo com as palavras orbitando ao meu redor, parar para escrever. Nesses dias em que o corpo se torna ele próprio um fardo, em vez da ferramenta que tem sido para os meus passos, fico pensando na falta que me faz a força para dar conta daquilo que também sou eu. Perco um pouco. Tive de ter paciência para agarrar as palavras que vinham, mas que não tinha força para retê-las comigo. Agora tenho. Escrevo.
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A paciência é uma dádiva, mas não vem de graça. Tenho de exercitá-la. Quem trabalha com escrita sabe que as palavras orbitam seu próprio tempo, e mesmo entrar em órbita com elas não significa domá-las. Por isso deixo as palavras completarem seu ciclo. Eu as sigo com os olhos e os ouvidos atentos. Eu as persigo com o coração. Eu as colho quando estão maduras e amadureço com elas. Mas toda colheita requer alguma força.
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São raras as palavras que despencam no nosso colo, e mesmo estas não vêm como frutas pequenas. Vêm como asteroides.
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Tinha prometido escrever sobre o filme Todos nós desconhecidos, que estreou nos cinemas daqui na semana passada, e para isso eu preciso tirar algumas palavras do armário.
Muitas histórias com personagens queer, inclusive meu Sismógrafo, incorporam o momento célebre da saída do armário, e muita gente — também gente gay — aponta essa repetição como mera falta de diversidade na representação das experiências queer. Pessoalmente, não acho que seja um problema. Assumir-se e autoafirmar-se são gestos poderosos, marcos para a vivência da própria sexualidade, e acredito que justifiquem a recorrência do acontecimento.
Mais que isso, fico pensando que a saída do armário ecoa também na nossa mitologia pessoal — o repertório de narrativas, signos e referências que alimenta nosso imaginário e se reflete, por exemplo, naquilo que pensamos sentados diante de uma página em branco. Ou no que não pensamos.
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Sair do armário também se faz com palavras.
Minha mitologia, por exemplo, está repleta de discursos rebobinados em loop na cabeça de adolescentes introvertidos em noites frias no interior, em que eles contam finalmente para as pessoas quais são as formas dos seus próprios desejos. Minha mitologia inclui a noite quando, com 16 anos, eu disse a uma amiga que eu beijaria um menino. Isso foi na porta de uma papelaria em Andradas, em 2009, e se eu fizer bastante força consigo lembrar a roupa que ela estava vestindo, como era a maquiagem dela, como ela gostava de vampiros.
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Todos nós desconhecidos é um drama elíptico do Andrew Haigh. No filme, Adam, um escritor na casa dos 40, volta à sua casa da infância, onde encontra seus pais, mortos quando ele tinha 12 anos, e pode conversar com eles sobre uma série de assuntos pendentes. Em paralelo, Adam começa um relacionamento com Harry, seu vizinho de arranha-céu subpopulado.
A atmosfera de sonho (“Tudo é, e não é”, você já sabe) contagia o tom dos diálogos, o ritmo dos acontecimentos, a cor dos cenários. Por muito tempo, ou até descobrir que eu mesmo estava escrevendo uma história meio que dominada por esse tipo de atmosfera, achei o elemento onírico — que me dá a impressão de funcionar apenas se presente em tudo — meio cafona.
Mas aí você o deixa entrar. Aí você convive com a ideia de pessoas que já morreram, você mistura os tempos, você entrevê pela fresta da escrita seus pais mais jovens do que você é agora, fazendo suas escolhas erradas, afinal ser adulto é mesmo fingir que está no controle da situação quando na verdade você não faz ideia do ponto em que perdeu o controle.
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No entanto isso não é o mais importante, nem do sonho nem do filme. Para mim, o que importa é como as palavras do Adam e do Harry dão conta, com a impressão de darem conta sem querer, de uma experiência coletiva. Vários diálogos me deixaram com a sensação de espera, eu já ouvi isso antes ou que poderiam ter saído da boca de metade dos meus amigos queer.
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Há essa regra geral da escrita: quanto mais específico você for, mais chances tem de se tornar universal. Todos nós desconhecidos quebra com ela: quanto mais universal, mais... universal. E eu sei que a identificação é critério ingênuo para a formação do nosso gosto pelas narrativas, mas é um critério — principalmente para quem caçou desesperadamente histórias sobre a experiências queer quando era criança e adolescente e ainda busca, meio que sem querer, se reconhecer nos livros e nos filmes.
“Basta um personagem gay pra você gostar de qualquer coisa”, meus amigos dizem.
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Para além do desejo de me ver representado nas histórias, também há o desejo de que essas histórias não fiquem restritas ao alcance daqueles que podem se ver nelas. Quantas vezes eu não pensei que seria bonito se as pessoas ao meu redor olhassem para as histórias e me vissem ali, soubessem que, bem, eu sou um pouco assim, tivessem acesso a uma parcela do que eu sinto, senti, vou sentir?
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Muitas das pessoas diante de quem eu saí do armário não se importam com as histórias inventadas. Principalmente, ignoram as histórias em que pessoas como eu se esgueiram pelas ruas e amam de vez em quando. Principalmente, essas pessoas ignoram as histórias em que pessoas como eu conseguem capturar as palavras e dizê-las em voz alta. Escrevê-las. Tirá-las do armário.
Teria sido mais fácil se fosse diferente, porque é uma coisa mágica das histórias, isso de dar conta de uma experiência ou um sentimento coletivo. É uma das coisas que me deixa envaidecido pelo Sismógrafo — como muitas pessoas, principalmente homens gays, dizem se sentir presentes na voz do Edu. Foi o livro que consegui escrever porque era o livro que, à época, eu também queria ler. Pessoalmente, o Sismógrafo significava para mim este desejo: ser ouvido. E demorei para perceber que, via de regra, para ser ouvido, é preciso, mais que ter uma voz, aprender a usá-la.
Então hoje agarro as palavras. Escrevo.
(Espera: estou inventando uma língua
para dizer o que preciso)
Ana Martins Marques
Depois de mais de 13 anos em São Paulo estou me mudando de cidade, e provavelmente é sobre isso que vou escrever na minha próxima publicação aberta. Para ajudar com os muitos gastos da mudança, decidi vender parte dos meus livros. Qualquer um sai por R$ 15, e há muita coisa boa e nova na lista. Todos os títulos e informação sobre envio/retirada estão aqui. Mas você também pode ajudar, claro, assinando esta newsletter.
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Bonito texto, Leonardo. Ainda tô me devendo assistir ao filme, mas o diálogo que você destacou me pegou demais. Poderia ser eu falando ali.